Falo sobre um tópico muito sensível : a má educação de nossas crianças.
O que será que define essa categoria a que denominamos de 'criança mal educada', como ela se constitui, o que é possível fazer- ou deixar de fazer- para resgatar, reverter ou salvar esta pequena criatura tão mirada pelos olhares contemporâneos?
O que será que define essa categoria a que denominamos de 'criança mal educada', como ela se constitui, o que é possível fazer- ou deixar de fazer- para resgatar, reverter ou salvar esta pequena criatura tão mirada pelos olhares contemporâneos?
O tema da boa educação infantil, mesmo consideradas as diferenças culturais, sociais e econômicas no que se refere ao conceito, fomentou-se com o processo de valorização da infância que vimos acontecer no século XX e é um dos mais polêmicos e apaixonados temas de nosso tempo. Impressiona como ninguém é imparcial ao tema e multiplicam-se receitas de boa educação que, curiosamente, costumam ter prescrições radicalmente paradoxais, tais como: "seja rígido, deixe chorar no berço", ou " não a frustre, seja fisicamente afetivo". Tenha parto normal, coloque em escola religiosa, repreenda, leve ao curso de inglês precocemente, enfim... É preciso no mínimo escolher uma "crença", uma espécie de filiação filosófica de educação, pois seria enlouquecedor seguir indiscriminadamente os conselhos de cada uma delas.
Educar alguém é, em realidade, cultivar algo em que acreditamos nesta pessoa. Em geral, queremos associar a educação ao cultivo de algo bom, mas na verdade, se é algo bom, algo mau, algo dispensável, isto são valores que atribuímos de acordo com nosso código moral pessoal - nem sempre ético. Ainda que educação e ética tenham estreitas correlações e seria bom acreditar que sempre nos balizamos eticamente na tarefa de educar, há diversos perfis possíveis e bem sucedidos de treinamento. Se somos ecléticos e condescendentes ao compreender que há múltiplos caminhos que conduzem, se não a uma boa educação, ao menos a uma educação adequada- ainda que não necessariamente de acordo com nossas crenças pessoais-, somos extremamente precisos em identificar quando uma educação falha. Ninguém tem dúvidas existenciais profundas quando vê uma criança sendo mal educada e inconveniente. Sabemos identificar uma criança que não respeita as regras de adequação comportamentais toleráveis a seu grupo- a seu grupo, enfatize-se. Aos professores, não são simpáticas, os psicólogos se debruçam sobre elas como se enigmas fossem- nem tão graves que a elas possa ser atribuída um diagnóstico, nem tão pouco perturbadoras que se possa dispensá-las. A família está sempre passando a criança de mão em mão, de cuidador em cuidador, como uma batata quente.
Não é difícil, aparentemente, identificar um exemplar humano infantil mal educado. Uma vez que nos ressalvamos de qualquer hipóteses de patologia psíquica ou neurológica, resta-nos perguntar: onde está o problema e o que fazer- se é que devemos fazer algo- por ele?
Freud dizia que a educação infantil é tarefa, por definição, impossível, pois é impossível domar o inconsciente ou a vontade de aprender de alguém. O que é possível é investigar em que se inscreve e por que paragens imaginárias e fantasísticas anda o desejo inconsciente de uma criança "mal educada". Lá deve estar também perdido o desejo de aprender, o desejo de ser amado e reconhecido por sua adequação às regras comportamentais de seu grupo.
A verdade é que crianças são extremamente solícitas em relação às demandas parentais, especialmente as mais profundas e inconscientes, desejosas que são de conquistarem o amor dos progenitores. Elas se adequam e costumam responder stricto sensu exatamente àquilo que lhes foi pedido. Sendo de tal forma literais na resposta à demanda parental que se lhes endereça, denunciam qualquer ambiguidade entre a exigência formal e social de bom comportamento que os pais tem sobre elas e a demanda inconsciente que estes mesmos pais destinam a elas. Será que nós pais queremos mesmo que nosso bebê de dois anos não faça escândalo no shopping ou no fundo achamos que isto é aceitável, sinal de "personalidade forte" ou de coragem? Será que queremos que nossas crianças sejam estudiosas mas no fundo as autorizamos a que sejam tão pouco dedicadas como nós mesmos fomos quando crianças? Queremos que sejam dóceis mas no fundo achamos que, sem rebeldia, serão oprimidas pelo chefe quando adultas e seria melhor que fossem elas as opressoras?
Educar uma criança é tornar consciente a demanda inconsciente dos pais sobre elas, é evidenciar, assim, qualquer incoerência entre o comportamento que se exige das crianças e os valores e crenças sobre a vida, sobre nossas crianças, sobre nós mesmos, que nós, os pais, nutrimos inconscientemente.
Enquanto prevalece a incoerência, qualquer investida da escola, da sociedade, dos próprios pais em demandas que divirjam das demandas do desejo - consciente ou inconsciente - dos pais sobre seus filhos, não passam de um esforço vão e de um grande aumento na frustração dos educadores e educandos envolvidos. A melhor receita, portando, de bem educar, é: independente de crenças e escolas filosóficas, conscientizemo-nos das demandas ambíguas e incoerentes que temos - e todos temos- sobre nossos filhos. Contemplar o desejo do que inconscientemente gostaríamos que nossos filhos fossem é devolver a coerência lógica ao discurso que destinamos aos pequenos. É a única maneira de educá-los, ou melhor, educarmo-nos, e assim, libertá-los para que usufruam do seu próprio desejo de aprender, de pertencer, de se adequar - e de dispensar tudo isso, quando for também um desejo autêntico da criança.