domingo, 18 de agosto de 2013

Educa-se uma criança?

Falo sobre um tópico muito sensível : a  má educação de nossas crianças.
O que será que define essa categoria a que denominamos  de 'criança mal educada', como ela se constitui, o que é possível fazer- ou deixar de fazer- para resgatar, reverter ou salvar esta pequena criatura tão mirada pelos olhares contemporâneos?
O tema da boa educação infantil, mesmo consideradas as diferenças culturais, sociais e econômicas no que se refere ao conceito, fomentou-se com o processo de valorização da infância que vimos acontecer no século XX e  é  um dos mais polêmicos e apaixonados temas de nosso tempo. Impressiona como ninguém é imparcial ao tema e multiplicam-se receitas de boa educação que, curiosamente, costumam ter prescrições radicalmente paradoxais, tais como: "seja rígido, deixe chorar no berço", ou " não a frustre, seja fisicamente afetivo". Tenha parto normal, coloque em escola religiosa, repreenda, leve ao curso de inglês precocemente, enfim... É preciso no mínimo escolher uma "crença", uma espécie de filiação filosófica de educação, pois seria enlouquecedor seguir indiscriminadamente os conselhos de cada uma delas.
Educar alguém é, em realidade, cultivar algo em que acreditamos nesta pessoa.  Em geral, queremos associar a educação ao cultivo de algo bom, mas na verdade, se é algo bom, algo mau, algo dispensável, isto são valores que atribuímos de acordo com nosso código moral pessoal - nem sempre ético. Ainda que educação e ética tenham estreitas correlações e seria bom acreditar que  sempre nos balizamos eticamente na tarefa de educar, há diversos perfis possíveis e bem sucedidos de treinamento. Se somos ecléticos e condescendentes ao compreender que há múltiplos caminhos que conduzem, se não a uma boa educação, ao menos a uma educação adequada- ainda que não necessariamente de acordo com nossas crenças pessoais-, somos extremamente precisos em identificar quando uma educação falha. Ninguém tem dúvidas existenciais profundas quando vê uma criança sendo mal educada e inconveniente. Sabemos identificar uma criança que não respeita as regras de adequação comportamentais toleráveis a seu grupo- a seu grupo, enfatize-se. Aos professores, não são simpáticas, os psicólogos se debruçam sobre elas como se enigmas fossem- nem tão graves que a elas possa ser atribuída um diagnóstico, nem tão pouco perturbadoras que se possa dispensá-las. A família está sempre passando a criança de mão em mão, de cuidador em cuidador, como uma batata quente.
Não é difícil, aparentemente, identificar um exemplar humano infantil mal educado. Uma vez que nos ressalvamos de qualquer hipóteses de patologia psíquica ou neurológica, resta-nos perguntar: onde está o problema e  o que fazer- se é que devemos fazer algo- por ele?
Freud dizia que a educação infantil é tarefa, por definição, impossível, pois é impossível domar o inconsciente ou a vontade de aprender de alguém. O que é possível é investigar em que se inscreve  e por que paragens imaginárias e fantasísticas anda o desejo inconsciente de uma criança "mal educada".  Lá deve estar também perdido o desejo de aprender, o desejo de ser amado e reconhecido por sua adequação às regras comportamentais de seu grupo.
A verdade é que crianças são extremamente solícitas em relação às demandas parentais, especialmente as mais profundas e inconscientes, desejosas que são de conquistarem o amor dos progenitores.  Elas se adequam e costumam responder stricto sensu exatamente àquilo que lhes foi pedido. Sendo de tal forma literais na resposta à demanda parental que se lhes endereça, denunciam qualquer ambiguidade entre a exigência formal e social de bom comportamento que os pais tem sobre elas e a demanda inconsciente que estes mesmos pais destinam a elas.  Será que nós pais queremos mesmo que nosso bebê de dois anos não faça escândalo no shopping ou no fundo achamos que isto é aceitável, sinal de "personalidade forte" ou de coragem? Será que queremos que nossas crianças sejam estudiosas mas no fundo as autorizamos a que sejam tão pouco dedicadas como nós mesmos fomos quando crianças? Queremos que sejam dóceis mas no fundo achamos que, sem rebeldia, serão oprimidas pelo chefe quando adultas e seria melhor que fossem elas as opressoras?
Educar uma criança é tornar consciente a demanda inconsciente dos pais sobre elas, é evidenciar, assim, qualquer incoerência entre o comportamento que se exige das crianças e os valores e crenças sobre a vida, sobre nossas crianças, sobre nós mesmos, que nós, os pais, nutrimos inconscientemente.
Enquanto prevalece a incoerência, qualquer investida da escola, da sociedade, dos próprios pais em demandas que divirjam das demandas do desejo - consciente ou inconsciente - dos pais sobre seus filhos, não passam de um esforço vão e de um grande aumento na frustração dos educadores e educandos envolvidos.  A melhor receita, portando, de bem educar, é: independente de crenças e escolas filosóficas, conscientizemo-nos das demandas ambíguas e incoerentes que temos - e todos temos- sobre nossos filhos. Contemplar o desejo do que inconscientemente gostaríamos que nossos filhos fossem é devolver a coerência lógica ao discurso que destinamos aos pequenos. É a única maneira de educá-los, ou melhor, educarmo-nos, e assim,  libertá-los para que usufruam do seu próprio desejo de aprender, de pertencer, de se adequar - e de dispensar tudo isso, quando for também um desejo autêntico da criança.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Diferença não é ofensa.


É comum recebermos no consultório jovens adultos trazidos por seus pais. Talvez se nós, na nossa cultura, não fôssemos todos testemunhas do prolongamento da adolescência, esta situação causasse ainda mais estranhamento. 

De que se queixam esses pais que procuram psicoterapia para seus filhos de 20, 22 anos?

Não  reclamam mais de rebeldia,  como se esperaria há algumas décadas atrás. Nem do mau rendimento escolar, queixa mais adequada à infância. Os pais se queixam de apatia. Uma apatia que parece ser tamanha a ponto de fazer com que o jovem paciente abdique de seu próprio discurso, deixando, docilmente, que os pais demandem em seu lugar. Obedientes, eles comparecem à sessão, semanalmente. Quando questionados, falam de uma melancolia generalizada, desinteresse pelas atividades de modo geral- sociais e laborativas. Não há, no discurso destes jovens, pista alguma de onde poderíamos buscar um investimento libidinal que nos alavancasse o trabalho terapêutico. Nada é ressentido, não se encontra relação com nenhuma experiência afetiva traumática. A vida é um enorme oceano de tédio, sem faróis, ilhas, ou praias. 

Entretanto, esse discurso obviamente não se sustenta por mais do que algumas sessões. Digo obviamente, porque sabemos que nós humanos nunca nos cansamos de desejar- nem que seja a morte. As falhas de coerência no discurso apático são denunciadas aqui e acolá pela alusão ao medo. Medo em diferentes manifestações mas que resumirei aqui num único: o medo da individuação. Estes jovens percebem que, de algum modo, o desejo vai diferenciá-los de seus pais. Vai trazer atritos, dissonâncias. Vai frustrar expectativas. E preferem, num movimento equivocado de amor, anular o próprio desejo. Não desejar nada- como se isso fosse possível. Não porque isso seja mais fácil, já que, de fato, não o é. Implica sofrimento de todo modo.

Mas a minha impressão é que diferenciar-se, hoje,  exige uma radicalidade facilmente confundível com violência.

É como se de um lado estivesse a massa generalizada de uma classe social, cultural, econômica e para se fazer parte dela, há um script cada vez mais rígido. E de outro, as minorias todas tão minuciosamente classificadas. Parece que ser um indivíduo diferenciado significa ser banido da sua classe de maneira muito radical e abraçar uma causa minoritária. E aí não me refiro apenas àquelas minorias politicamente nomeáveis mas também àquelas outras que nomeamos informalmente: hippies, alternativos, nerds, maconheiros, intelectuais. A escolha é colocada de modo cruel: ou sou exatamente igual aos meus, ou sou um esquisito.

Não que diferenciar-se dos pais tenha sido jamais tarefa fácil ou mesmo esquivável. Talvez a apatia seja uma maneira de fazê-lo tão violenta quanto à rebeldia de outros tempos. A intensidade da violência sinaliza a dureza da tarefa de deslocar-se, mesmo que minimamente, do ideal atribuído a nós pelos nossos pais. Esses pais, a quem amamos tanto, mas que nos investem com um excesso de idealização amorosa aprisionante. Sempre me ocorre dizer nestes casos que ser diferente de alguém não é ofender. É preciso afrouxar a rigidez para comportar aquilo que é apenas tão idiossincrático como cada um de nós. Frustrar expectativas excessivamente idealizadas pode ser desconfortável, mas não é desamor e nem precisa ser abandono.

Tentamos então(re)construir na psicoterapia este lugar do desejo que é único, próprio, incomparável a qualquer outro, significando-o de forma nova,  auto-referenciada, desidentificando-o da ameaça de ofender, frustrar, perder violentamente. Por mais estranho que nos pareça- a alteridade é sempre muito estranha, não?- diferença não é ofensa.

Para os pais aflitos pelos filhos apáticos, o recado é que é importante permitir e nomear a diferenciação dos filhos, mesmo que isso seja afetivamente dispendioso. Àquilo que não é diferença, só resta ser indiferença.





segunda-feira, 27 de junho de 2011

TDAH: a falta de atenção que se passa adiante ou aonde quer que eu vá busco você com o olhar.

Nada mais em voga do que Transtorno de Atenção e Hiperatividade. É o diagnóstico da moda.

Ainda que não haja intenção pejorativa na constatação deste fato-  já que um diagnóstico acurado pode ser estruturante emocionalmente,  além de determinante no delineamento de um projeto terapêutico de êxito-, a disseminação do termo evoca a própria falta de consistência na caracterização do quadro. Uma série de sintomas descritivos em torno de três grandes  núcleos- desatenção, hiperatividade e impulsividade-  desgarrados de aspectos longitudinais de personalidade e significado emocional. Neste sentido, como situar este transtorno numa linha de desenvolvimento afetivo de modo a intervir para sua evolução positiva? É aquela velha pendenga: para que serve o diagnóstico se ele não trouxer benefícios ao paciente?

Debruçando-se com mais atenção sobre o tema,  é possível encontrar estudos que apontam similaridades na psicodinâmica de pacientes hiperativos. A maioria deles faz correlação entre este transtorno e o transtorno de personalidade narcisista. E o narcisista, como já abordamos, é aquele cujas fronteiras do próprio self são frágeis e mal delimitadas, exigindo constante esforço de atenção. Dificuldade para ouvir os outros, respeitar regras formuladas por outros- e aqui se inclui o tempo objetivo, respeito ao prazo das tarefas, adequação às regras de convivência social (permanecer sentado na sala de aula, por exemplo)- são sintomas de um caráter narcisista que sofre do mal primordial de ter nubladas as fronteiras que separam o seu próprio self do outro.  Isso significa que os outros são projeções de mim mesmo  e portanto, a percepção da  diferença presente na alteridade é frequentemente despercebida. Distrair-se facilmente de uma tarefa determinada é também uma maneira de dizer que a tarefa não importa ou que o outro vai tolerar meu tempo- afinal, ele sabe quem eu sou. Seguir toda e qualquer ideia que dá na telha é também controlador. Sigo meus objetivos prioritariamente e não aqueles acordados com meu chefe, meu professor ou meu companheiro. O narcisista tem o ego expandido e sofre pela falta de registro de regras que o contenha em seus limites. Ainda que não pareça, o ego inflado dói com uma sensação de ausência de identidade e de inadequação perene. Daí sua necessidade exagerada de que olhemos para eles,  esperemos o tempo deles e de que o controle das relações esteja em suas mãos: eles precisam que nós o certifiquemos de que ele existe, é individuado e tem valor. Ele precisa do nosso olhar confirmador.

Assim me parece também um típico paciente com TDAH. Seu olhar não se prende a nada por muito tempo e persistência é um problema. Parecem errantes, vagam de lá pra cá, sem orientação, buscando alguma coisa que os presentifique e sintetize. De fato, os hiperativos buscam o brilho nos olhos daquela mãe deprimida, dispersa, presente sim, mas de olhar esvaziado de desejo por aquele bebê. Pelo que os olhos da minha mãe brilham, que não por mim? O TDAH é um errante que vaga por aí sem destino, imaginando que em algum lugar- numa borboleta passando, num carro de som vendendo pamonha- ele vá encontrar o foco que fazia brilhar os olhos de seu cuidador  que fitava o horizonte sem se fixar. E este olhar brilhante de desejo finalmente o cruzará,  integrando e reafirmando sua existência subjetiva. Enquanto isso não acontece, ele passa adiante a falta do olhar que ele próprio vivenciou, buscando alhures, sempre. Inconscientemente, repetimos nosso sofrimento na esperança de que ele possa, na presença de outro, ser ressignificado e elaborado.

Não coincidentemente, há maior incidência de TDAH em filhos de famílias numerosas, onde não há atenção individualizada. Faz sentido também que este transtorno tenha se evidenciado a partir da entrada das mulheres no mercado de trabalho,  quando as mães e cuidadoras multiplicaram suas tarefas e interesses, mesmo cabendo lembrar que não é a simples ausência da mãe que adoece. Trata-se da ausência do olhar interessado do cuidador sobre aquela criança na sua especificidade. 

Outro dado interessante é que cerca de 23% dos pacientes com TDAH sofreram algum grau de abuso físico ou moral na infância. Neste caso, a falta do olhar presentificado parece ter alcançado os limites da negligência e é como se este indivíduo se cristalizasse neste momento traumático, no qual a desatenção do cuidador foi trágica e teve consequências nefastas. E então ele repete a desatenção disparatada e cruel de que foi vítima, sempre lembrando que toda repetição é uma tentativa, mesmo que disfuncional, de retomar o afeto envolvido de uma maneira mais saudável.

O transtorno de déficit de atenção faz pensar em duas coisas: Na necessidade contemporânea de sermos reconhecidos como indivíduo, que é cada vez maior e mais demandada pela cultura- certamente no século XIX filhos eram criados em dúzias e não caberia questionamento sobre a subjetividade de cada um; e na contraditoriedade entre esta necessidade e a dificuldade que temos, cada vez maior, de olhar o outro com amor na sua especificidade e diferença. O que não se pode dizer deste transtorno é que ele seja ultrapassado ou descabido. Ele é o próprio sintoma da comtemporaneidade.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre (a má reputação do) narcisismo.

Todo mundo empresta sem nenhuma cerimônia o termo narcisismo cunhado por Freud, pena que nem sempre de maneira fidedigna.

Freud, lá em 1914, identificou uma fase da constituição da subjetividade que acontece em torno do fim do primeiro ano de vida e que é definida pelo amor à imagem integrada do eu. Ele chamou esta fase do desenvolvimento de narcisismo, numa referência ao mito grego em que Narciso se apaixona pela sua imagem refletida no espelho das águas a tal ponto, que aliena-se nela, caindo no lago e morrendo afogado.

O objeto de amor do narcista é o eu integralizado. Cabe lembrar que, em teoria, o narcisista é um bebezinho  que acaba de dispender uma grande energia em sair do estágio de perverso polimorfo - a fase pré-narcísica na qual as pulsões são desintegradas. Satisfação oral, genital, anal, cada uma delas habita uma parte do corpo que é um corpo até então, desunificado e parcial . A idéia de eu ligada à imagem do corpo  começa a acontecer quando o bebê consegue reunir todas as pulsões parciais e alinhavá-las numa imagem global de si próprio. A imagem de nós mesmos que hoje reconhecemos facilmente no espelho não é uma associação automática, como parece. Ela é construída com alguns instrumentos. O primeiro deles é o ideal dos pais. A idealização que nossos pais fazem sobre nós, ainda que muito depressa tenham a trágica tendência de nos aprisionarem, são o casulo onde nosso eu vai se integrar e se desenvolver. A partir do que nossos pais sonham para nós organizamos o rascunho do humano que fomos autorizados a ser. Depois aperfeiçoamos o projeto.

Lacan dizia que quando o bebê se reconhece no espelho, ele reconhece a promessa que os pais fizeram a ele desde o princípio. A promessa de que, ele mesmo, é como nós que aqui vivemos:  adultos e integrados, humanos, culturais e falantes. Os pais garantem ao bebê que ele um dia se tornará um destes outros que ele vê. Que será inserido nesta linguagem que outros já compartilham. O bebê será um dia uma alteridade particular entre as outras. E essa subjetividade particular começa a ser grudada na imagem do humano que ele enxerga ao olhar no espelho.

No senso-comum associamos equivocadamente o narcisismo a um processo egóico de vaidade e auto-idolatria. Quando dizemos que alguém é narcisista, em geral estamos nos referindo a alguém bem desagradável. Um sujeito que só pensa em si, só fala de si, só cuida da sua própria aparência, quase que obsessivamente.
Entretanto, o narcisismo, tal qual descrito por Freud, fala de que a imagem integrada do eu é o nosso primeiro objeto de amor. Opa, estamos falando de amor e não de doença.  E mais: ele nos contou que essa primeira escolha de objeto de amor pela qual todos nós passamos é o que viabilizará a próxima fase do desenvolvimento : a escolha do objeto de amor sexual. Um outro de nós. 

O narcisista é uma pessoa que olha pra si o tempo todo, sim. Mas não por admiração. Ele fita sua imagem- e em geral é uma idéia de si mesmo que não encontrou muito respaldo nos que estavam próximos - initerruptamente para não perdê-la de vista. Seu temor é o de que, se parar de olhar pra ela, ela vai desaparecer. Ela é frágil e precisa de esforço consciente de manutenção.  Costumo fazer a comparação entre o eu narcísico e aquele número de CPF que a gente precisa decorar rapidamente: não podemos parar de pensar e repetir os números na sequência porque eles ainda não foram incorporados na memória. Mais tarde, tendo sido assimilados, não precisaremos mantê-los em foco a todo tempo. Eles  já se constituíram parte da memória rígida e os acessaremos quando precisarmos. 

Se pensarmos estritamente da maneira freudiana,  a retomada do narcisismo na fase adulta sinaliza a retomada de um investimento amoroso. E já que o amor narcísico é o pré-requisito do amor objetal, não é demais concluir que o narcisista está na pista certa do amor. 
Por outro lado, se usarmos a dica de Winnicott e suas tão pertinentes palavras: narcisistas são criaturas que enfim encontraram, na vida ou na psicoterapia, uma mãe suficientemente boa que lhes permitirá  finalmente fazer a transição do falso-self- aquele que foi adotado às pressas em nome da sobrevivência em um ambiente emocionalmente desfavorável - para a estruturação do verdadeiro self.

Adote um narcisista. São  les amoureux de amanhã.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A (des)importância da função materna.

Faço uma reflexão sobre a maternidade, mais propriamente sobre a função materna.
E digo função materna porque maternagem é uma função: pode ser desempenhada por pais, avós, cuidadores, professores, amigos, etc. Não é exclusividade de mães biológicas e nem do sexo feminino.
E como função que é, maternagem é um trabalho.
Um trabalho árduo, delicado, ininterrupto e  desvalorizado. Nos referimos à maternagem como se fosse uma dádiva passiva da natureza, da ordem das coisas que, de tão elementares, arcaicas e essenciais,  não tem nome e estão prontas e acessíveis a qualquer tempo.
Não é bem assim.
Atentar para a maternidade como um trabalho permite que de fato nos debrucemos com mais investimento sobre ela. Crianças nascem uns saquinhos de ossos cheios de grito e fedor e dor e falta de sentido. Nós mães é que vamos, de tão à miúde que até parece invisível, dando formas humanas praquele bichinho. Nós dizemos, trêmulas por causa daquele choro incontível: ah, vc deve estar com fome. E oferecemos o seio. Completamos: Nossa, isso parece cansaço. E ninamos. E os lambemos e vestimos, passamos perfume em seus cabelos. Enfeitamos, ensinamos truques divertidos.
Isso é o que fazemos sendo mães suficientemente boas.
Suficiente porque nosso filho também se constrói nas nossas ausências. Nossas faltas, desatenções, nossa vontade de estar fazendo outra coisa, em outro lugar, com outra pessoa. A falta é essencial na constituição do psiquismo, e quem começa faltando somos nós, mães. Faltamos quando somos humanas e naturalmente nos interessamos por outras coisas, pelo parceiro, pelo trabalho, por arte ou por poder. Ensinamos, dessa forma, que  exclusividade não é uma possibilidade. Nosso bebê não é o bastante para nossa felicidade,  assim como nós mães, não preenchemos tudo que nossos filhos desejam. E isso é estruturante para todos nós.
Mas tudo isso- desejar, misturar, desmisturar, atentar para sutilezas do processo, nomear, significar, sentir culpa, sentir desejo, sentir culpa novamente porque somos mães e temos desejos, sentir saudade...Tudo isso é trabalho. Tudo isso é trabalho de subjetivação que, como mães, ofertamos passivamente para um outro. Um outro que vai galgar nossas costelas e pisotear sem dó nos nosso ombros para se tornar gente. Um outro, amado em sua alteridade- porque amar um filho é principalmente aceitar a sua diferença e a ela submeter a nossa. Somos tradutores mediando o mundo como o entendemos e o mundo como nossas crianças entenderão.
E isso é trabalho, talvez o mais árduo que exista. Abrir mão da manutenção egóica parar dar a luz do holofote a outro.
Mãe não é de graça, definitivamente.

domingo, 5 de junho de 2011

A (não) autopercepção corporal.



Quem não acha super estranho se ver em fotos? É sempre um susto, algumas vezes um bom susto, mas sempre surpreendente. Isso mostra o grau de distorção com que apreendemos nossa imagem corporal.

Isso é assim porque a idéia que a gente tem do nosso corpo é muito diferente do corpo como ele é. A idéia que temos da nosso corpo é contaminada pela informação social que temos de nossas características psíquicas: sou teimosa, preguiçosa, pareço com meu pai, sou a mais alta das irmãs, etc. Isso pode variar para um esquema mais ou menos exato em cada caso, nem todo mundo tem uma idéia completamente distorcida do corpo real - mas todo mundo tem algum grau de distorção da realidade pura. E claro que tem aquelas situações mais graves, quem não conhece ao menos um caso daquela menina linda, linda, linda que é toda complexada porque se acha torta e orelhuda? Sem valo em toda a expectativa cultural de adequação a uma imagem esguia e caucasiana.

Não é nada simples mas mensagem é a seguinte: É preciso relaxar o julgamento que temos sobre a nossa auto-percepção corporal, ela não é fidedigna. Não, a gente não é tão gordo quanto imagina. Nem tão magro, nem nosso cabelo é tão horroroso que chama a atenção de todo mundo. Seu joelho não é torto e se for, bem, poucos vão notar com toda a ênfase e crueldade que só nós mesmos somos capazes de emprestar aos nosso defeitos.

Legenda: A imagem é de uma escala que mede a percepção corporal ligada ao peso em adolescentes. O grau de distorção obtém-se subtraindo o número da figura que representa o corpo que vc  acha que tem pelo número da figura de corpo que vc gostaria de ter.

Sobre lamber, morder, chupar, engolir, mastigar ou os dilemas da fase oral


Embore leve quando em vez uma mordida na escola, minha filha de 2 anos e meio ainda não descobriu a mordedura.



Digo "ainda" porque a experimentação oral é esperada: etapa necessária do desenvolvimento humano, embora eu receba muitos pais preocupadíssimos com o comportamento  pretensamente "agressivo" de seus filhos nesta idade. Morder eventualmente os coleguinhas da creche não é nada preocupante.

A angústia da fase oral, pela qual estes pequenos estão passando ( mesmo tão pequenos já tem suas primeiras angústias inconscientes!) tem a ver com a definição dos limites do corpo através da oralidade. Colocar objetos na boca, sentir o gosto, a textura, ter vontade e medo. Engolir, ser engolido. Misturar, separar. Ser um só, ser eu mesmo. A mamãe me engoliu ( sim, para a barriga de novo!) e eu acabei ou mamei a mamãe até ela acabar? Tudo é pensado- se fosse pensado como nós entendemos- do ponto de vista da boca. Pode parecer exagero, mas para quem há menos de 2 anos ainda estava preso a um cordão umbilical, dilemas orais são uma enorme evolução e sinalizam que a individualidade está sendo formada saudavelmente e que este pequeno serzinho já percebe-se como autônomo.